Brasil

“Não é possível implementar políticas de desenvolvimento sustentável sem abordar a Educação de Jovens e Adultas/os”

Por Marina Martins González, para a CLADE

Com a aproximação da reunião de balanço intermédio da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI), que acontecerá de 25 a 27 de outubro de 2017, em Suwon, Coreia, realizamos uma série de entrevistas a especialistas em educação de pessoas jovens e adultas (EPJA) da América Latina e do Caribe, com vistas a discutir os avanços e desafios pendentes para a garantia dessa modalidade educativa como um direito humano em nossa região.

Nessa nona edição, entrevistamos Timothy Ireland, coordenador da Cátedra UNESCO de Educação de Jovens e Adultas/os (EJA) e professor da Universidade Federal da Paraíba, que comenta os principais desafios e avanços da EJA no Brasil. “Faço um balanço realista: não avançamos como poderíamos e deveríamos ter avançado. Não aproveitamos o impulso que poderia ter nos dado a realização da CONFINTEA VI no Brasil, em 2009. Na América Latina, em geral, não se apostou na EJA como se deveria”, afirma. Leia a entrevista completa a seguir.

Quais são os principais avanços e retrocessos registrados nos marcos legais, políticos e institucionais do Brasil, nos últimos seis anos, desde a CONFINTEA VI em Belém do Pará?

Foi um período de certa estagnação. Conseguimos, por exemplo, que o programa Brasil Alfabetizado continuasse, mas agora há menos pessoas matriculadas, menos clareza do que se quer do programa. O que falta é um reconhecimento da EJA. A forma como estamos realizando essa modalidade educativa não satisfaz ninguém, nem estudantes, nem professores. O número de matrículas vem caindo desde 2007, mas não podemos negar que não se está oferecendo algo adequado às necessidades das e dos estudantes. Dizer que a EJA está falida é algo muito forte, mas precisamos urgentemente parar para repensá-la.

Outros programas do governo federal como o Projovem ou o Proeja acabaram subordinados ao Pronatec. Esse último ganhou muito espaço, mas não sei se é a resposta mais acertada. Os cursos de curta duração, na minha opinião, preparam as pessoas para o mercado de trabalho, mas não para o mundo do trabalho. Precisamos de uma formação mais abrangente. O Proeja é um projeto ainda pequeno. O Projovem vinha ganhando espaço, e a proposta de levá-lo para os presídios era interessante. Mas, no momento, parece que tudo está congelado.

A CONFINTEA criou certa expectativa para a EJA no Brasil, que não foi respondida. Na área de formação, isso também ocorreu. Tivemos várias propostas de cursos à distancia e de especialização, mas, dado o tamanho do desafio que temos, exige-se uma proposta muito maior.

O Departamento de EJA do Ministério da Educação perdeu muitos quadros. O número de pessoas foi se reduzindo nos últimos quatro ou cinco anos. Esse é um reflexo da falta de importância que se dá à EJA. Também houve uma falta de liderança do Departamento, que teve dificuldade em ter protagonismo e propor atividades. O diálogo com a sociedade civil (especialmente por meio da Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos) foi enfraquecido, não foi usado. O diálogo com os fóruns estaduais de EJA também foi muito menos intenso do que antes.

Ainda sobre a realização da CONFINTEA no Brasil, penso que o governo não reconheceu a importância dessa Conferência. O fato de o presidente Lula não ter participado do evento foi um erro muito grande, pois poderia ter dado uma visibilidade à EJA em nível mundial muito importante.

As Conferências devem contar com o seguimento dos seus compromissos. Tentamos fazer isso, mas sinto que não ocorreu. Faltou ao governo, inclusive, aproveitar a importância de o Brasil ter recebido a CONFINTEA. Obviamente, fomos atropelados pela conjuntura internacional e pelas crises econômicas que vieram em série, a partir de 2008.

E com relação aos avanços?

Destacaria alguns pontos na área legal, pois conseguimos uma legislação mais avançada, especialmente com as diretrizes nacionais para a educação prisional, que foram reconhecidas e aprovadas, tanto por organismos do setor de educação, como da justiça. Em seguida, foi aprovado um decreto sobre o financiamento da educação em prisões . Então, houve avanços em termos de estrutura legal, mas pouco se avançou no cotidiano da educação nas prisões.

O fato de o Programa Brasil Alfabetizado ter continuado foi positivo. Com o atual quadro de mais de treze milhões de pessoas no país que não sabem ler nem escrever, esse fato é muito importante. No entanto, não é uma questão totalmente resolvida. Apesar da tentativa de permitir que os estados brasileiros abram mais salas de aula para pessoas recém-saídas do Brasil Alfabetizado, garantir a continuidade na EJA ainda é muito difícil. Somente 10% dos estudantes do Brasil Alfabetizado migram para as salas de aula de EJA. Apesar da importância do Programa, esse dado também o coloca em xeque.

Faço um balanço realista: não avançamos como poderíamos e deveríamos ter avançado. Não aproveitamos o impulso que poderia ter nos dado a CONFINTEA. Na América Latina, em geral, não se apostou na EJA como se deveria.

No Brasil, existem políticas e projetos de EJA que sejam pertinentes para grupos de população vulneráveis?

De 2003 até 2007-2008, abriu-se espaço para grupos vulneráveis na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), do Ministério da Educação: mulheres, quilombolas, indígenas, populações rurais, etc. No entanto, esse enfoque foi se perdendo nos últimos anos. A SECAD não foi capaz de manter esse diálogo e os programas de educação para grupos mais vulneráveis. Em todas as áreas, o que tinha sido construído como alicerce, não avançou.

Talvez a área que tenha sido discutida mais fortemente nos últimos anos seja a educação para pessoas privadas de liberdade, inclusive porque a academia a tomou como uma área de pesquisa importante. Houve um período de alta produção acadêmica sobre a educação nas prisões, o que foi positivo. Outro elemento positivo foi a tentativa de articular os planos estaduais de educação nas prisões, envolvendo educadores, agentes e outros operadores. No entanto, em geral, não houve inovação. Os programas caíram na rotina e, com a diminuição de recursos dos últimos anos, manteve-se uma fachada, mas não se enfrenta de fato o problema.

Em seu país, existem espaços de participação e consulta da sociedade civil e de diferentes atores da comunidade educativa, em especial educandos/as e educadores/as da EPJA, sobre as políticas educativas?

Existe a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), mas esse espaço foi se enfraquecendo, ao longo do tempo, e não proporcionou que a sociedade civil tivesse voz ativa. O governo não estava interessado em ouvir a sociedade.

Outros espaços importantes são os Fóruns Estaduais de EJA. Antigamente, havia duas reuniões anuais entre o Ministério da Educação, a SECAD e os Fóruns Estaduais, mas a periodicidade desses encontros foi diminuindo, assim como sua força.

Não é só culpa do MEC ou da SECAD. Os próprios Fóruns têm perdido o seu foco, e a dinâmica das suas atividades diminuiu muito. Tais Fóruns passaram a agregar todos os setores envolvidos na EJA, canalizando essas várias vozes. Nesse sentido, quando o Fórum se enfraquece, esses setores ficam sem voz e sem canal de diálogo.

O próprio Ministério da Educação foi marginalizado da discussão sobre as políticas de EJA, já que a Secretaria Geral da Presidência da República tentou liderar e reunir a discussão sobre a educação popular em um departamento específico. Com isso, a EJA perdeu espaço.

A presença da educação popular na EJA é uma questão que dá identidade às políticas de educação do Brasil. A SECAD tentou retomar a discussão sobre a importância de se garantir uma política de educação ao longo da vida. No entanto, esse debate foi interrompido quando a presidenta Dilma Rousseff foi afastada da presidência.

Em geral, os espaços de participação da sociedade civil são limitados e restritos, criando-se uma dependência dos poucos canais de diálogo existentes.

Que mecanismos de monitoramento e seguimento foram estabelecidos para as políticas de EJA no Brasil?

A CNAEJA jamais conseguiu desenvolver esse monitoramento a contento. A Comissão existe, faz quatro reuniões ao ano, porém não é atuante para além desses encontros. A CNAEJA é burocrática. Deveria impulsionar estudos e propor avaliações, não simplesmente se reunir com os representantes da SECAD para discutir uma agenda proposta pela própria Secretaria. Além disso, o Ministério da Educação tem dependido de consultores para realizar essas avaliações e seguimentos, por não ter quadros próprios para essas atividades.

No primeiro período do Brasil Alfabetizado, foi elaborado um plano de monitoramento como parte integral do projeto, com orçamento e equipe responsável para essa tarefa. Foram feitos vários estudos, com a contribuição de pessoas experientes no campo da avaliação.

Recentemente, para realizar esse monitoramento, o Ministério da Educação e as agências internacionais, como OEI e UNESCO, contratavam consultores. Há um grande desafio para que o Ministério da Educação (MEC) consiga realizar esse seguimento sozinho, devido ao tamanho reduzido de sua equipe e às grandes dimensões do Brasil e do Programa. O Brasil Alfabetizado chegou a ter dois milhões de matrículas. Em média , apresentava 1,2 milhão de matrículas, em mais de 80 mil turmas.

O MEC chegou a apresentar, em seu site oficial, um Mapa Virtual do Brasil Alfabetizado, em que se podiam consultar as turmas, professores e outros dados. No entanto, essa ferramenta saiu do ar há dois ou três anos. Era um mecanismo de monitoramento interessante, que incorporava dados oficiais e da própria sociedade civil.

Considero que se dá muito pouca importância à avaliação neste campo. Nos últimos três ou quatro anos, não houve qualquer estudo sobre EJA proposto e financiado pelo Ministério da Educação. Houve teses e dissertações, mas ainda faltam muitos dados.

No Brasil, são suficientes os atuais recursos públicos destinados à EJA?

Com relação à EJA, não houve redução de recursos desde a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB). O problema é que não se consegue gastar na EJA o recurso que é destinado a essa modalidade educativa. Como o dinheiro que chega aos estados e municípios não é legalmente reservado para a EJA, os recursos acabam sendo destinados a outras áreas e níveis de educação.

Por isso, temos que continuar lutando para que o adulto e a criança tenham o mesmo valor para o FUNDEB. No Brasil Alfabetizado, calculávamos o gasto médio de 300 reais por pessoa ao ano. No FUNDEB, calcula-se um gasto público de cerca de 1.500 reais por pessoa, anualmente. Como se justifica realizar um programa como esse com 1/5 dos recursos necessários?

Precisamos sim de mais recursos, mas precisamos também aplicar melhor o dinheiro que já existe, fazendo avaliações e monitoramento para isso.

Que recomendação você faria às autoridades do seu país e também às internacionais, para que promovam e garantam o direito à educação das pessoas jovens e adultas na América Latina e no Caribe?

No novo cenário internacional, com a adoção das Agendas de Educação e Desenvolvimento Sustentável 2030, aborda-se a educação de pessoas adultas, não apenas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável referido à educação (ODS 4), mas também nas metas relacionadas a outras áreas, como saúde, trabalho e meio ambiente, de maneira transversal.

Nesse contexto, devemos cobrar que nossos formuladores de políticas apliquem os planos nacionais e internacionais existentes. Por exemplo, se executássemos o Plano Nacional de Educação (PNE) teríamos avanços enormes na EJA. Os instrumentos e planos nacionais existem, e são do Estado, não de um governo. Precisamos convencer os governos de que não é possível implementar políticas de desenvolvimento sustentável sem que se aborde a EJA. A EJA é uma ferramenta fundamental nesse processo de redimensionar o desenvolvimento.

Deja tu comentario