Brasil

“A EPJA deve gerar empoderamento e garantir que a/o estudante seja um sujeito de direitos, dignidade e entendimento do seu papel na sociedade”

Diante da aproximação da reunião de balanço intermédio da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI), que acontecerá de 25 a 27 de outubro de 2017, em Suwon, Coreia, realizamos uma série de entrevistas a especialistas em educação de pessoas jovens e adultas (EPJA) de América Latina e Caribe, com vistas a discutir os avanços e desafios pendentes para a garantia dessa modalidade educativa como um direito humano em nossa região.

Nessa oitava edição, entrevistamos a pesquisadora em EPJA e professora da Universidade de Campinas (UNICAMP), no Brasil, Débora Jeffrey, que analisa as principais oportunidades e brechas para a realização do direito à EPJA no país. “As autoridades dizem que hoje não há demanda na EPJA. Porém, não consideram as inúmeras dificuldades impostas a estudantes da modalidade, que as/os levam, muitas vezes, a desistir dos estudos. Falta merenda, segurança pública e transporte para que os estudantes possam chegar às escolas mais próximas. A modalidade parece uma inquilina do ensino regular, ocupa o espaço que sobrou”, afirma.

Leia a conversa completa a seguir.

Quais são os principais avanços e/ou retrocessos, em termos de políticas, leis e institucionalidade, que foram registrados para a EPJA no Brasil nos últimos 6 anos, desde a CONFINTEA VI em Belém do Pará?

Muita coisa aconteceu neste período. E acho que toda a conquista desses seis anos se finda com a mudança recente de governo. O que vou listar como avanço se refere até agosto do ano passado (2016). Com o impeachment da [presidenta] Dilma Rousseff, a educação de pessoas jovens e adultas deixa de ser uma agenda para o governo. Isso foi um complicador, porque trouxe a modalidade de volta a uma marginalização que perdurou durante toda a história da educação no Brasil, especialmente durante a Ditadura Militar.

A legislação teve avanços importantes até meados de 2015. São importantes os artigos referentes à educação de jovens e adultas/os na Constituição Federal de 1988. Depois, tivemos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com a inclusão da educação profissional na abordagem da EPJA. E mesmo o Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, faz referência à EPJA.

Outro avanço foi a criação da SECAD (Secretaria de Educação, Alfabetização e Diversidade) em 2004, e sua reestruturação, em 2011, como Secretaria de Educação, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), acrescentando-se assim a perspectiva da inclusão. Embora se critique a falta de integração dos programas da SECADI à Secretaria da Educação Básica, esse órgão abordou a educação de jovens e adultas/os, a partir de uma agenda política e a organização de  programas específicos, como o Brasil Alfabetizado, o PROEJA e, além disso, impulsionou a reestruturação de alguns desses programas com o PRONATEC. Quando o governo Temer decide, em agosto do ano passado, impedir a abertura de novas turmas do programa Brasil Alfabetizado, sinaliza que a EPJA será uma obrigação dos municípios e dos Estados, sem uma coordenação federativa pelo Ministério da Educação. Nessa mesma linha, o Ministro de Educação do governo Temer extinguiu a SECADI, deixando os programas de EPJA sem coordenação federativa, bem como recursos suficientes para a manutenção de programas e projetos federais.

Outro desafio é a falta de definição sobre o pacto que deve haver entre as distintas esferas de governo do país (União, estados e municípios) para garantir responsabilidades e recursos compartilhados para a priorização e implementação de projetos e programas de EPJA.

Existem espaços de participação e consulta para a sociedade civil e os diferentes sujeitos da comunidade educativa, especialmente educadoras/es e educandas/os da EPJA, na definição das políticas educativas do seu país ou localidade?

Sobre a sociedade civil organizada da EPJA, existem dois espaços bem distintos. Um se refere aos grupos que participam de parcerias público-privadas, oferecendo uma prestação de serviço para municípios, no que se refere à alfabetização e a programas de requalificação de adultas/os. Outro espaço é aquele ocupado pelos movimentos sociais que, de fato, como os Fóruns da EPJA, representam militância, luta e engajamento pela garantia do direito à educação. São duas instâncias distintas que, embora possam igualmente representar o terceiro setor na EPJA, dificilmente conseguem se comunicar e convergir em termos de princípios e ideais. Certamente, a concepção de direito à educação de jovens e adultas/os de cada uma será muito distinta. Uma tem vinculação clara com os princípios da educação permanente e ao longo da vida, e outra tem um engajamento muito voltado à garantia do direito à educação de pessoas jovens e adultas na perspectiva da transformação social e formação cidadã.

Por exemplo, na Secretaria de Juventude, no que se refere ao Programa Projovem, existem conselhos e comissões em que esses diferentes representantes da sociedade civil se articulam, convergem e discutem, sem chegar muitas vezes a um consenso. Nesses Conselhos, há defensoras/es da EPJA em sua função reparadora, equalizadora e qualificadora. A dificuldade de conciliar essa diversidade de olhares se vê em casos como o da Resolução CNE n.3/2010 do Conselho Nacional de Educação, que instituiu as Diretrizes Operacionais para a EPJA e reflete essas três perspectivas.

Em sua opinião, qual é a importância da Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultas/os e da participação dos Fóruns de EPJA nesse espaço?

Esse processo de formação e consulta aconteceu porque muitos representantes dos Fóruns estavam participando dos Conselhos implementados pelo governo federal, o que facilitou o diálogo e a comunicação e fortaleceu a instância política oficial como um espaço de participação social. O desafio é pensar a EPJA com todas as categorias que participam dos Fóruns que discutem essa modalidade, tanto ativistas, quanto educadoras/es e pesquisadoras/es, pois também com toda essa diversidade existem conflitos e disputas entre diferentes perspectivas.

Foi, sem dúvida, uma conquista o debate, a criação dos Conselhos e dos espaços de coordenação que vincularam os Fóruns. Foi uma iniciativa importante para aproximar as pessoas que vivem a EPJA e suas demandas no cotidiano com relação daquelas que desenham e implementam as políticas. No entanto, infelizmente, ao longo dos últimos seis anos, esses atores ou protagonistas do Fórum foram deixando a participação nas instâncias governamentais, e isso enfraqueceu, sem dúvida, o encaminhamento de novas demandas.

No Brasil, existem políticas e projetos específicos de EPJA para setores sociais vulneráveis?

Os públicos que recebem uma atenção diferenciada dentro da EPJA são: a população das zonas rurais, por meio da educação no campo; e as populações de comunidades quilombolas e indígenas. Mais recentemente, passou-se a abordar também a garantia da educação nas prisões, proposta que está em processo de implementação. Por outro lado, têm-se observado bons resultados, a partir de programas de escolarização e formação indígena, com os primeiros graduados e pós-graduados indígenas em universidades brasileiras. Para a população quilombola, os desafios são maiores, pois os programas educativos disponíveis, em geral, são iniciativas locais, distantes de programas nacionais e integrados.

Como o Brasil tem dimensões continentais, seria necessário criar uma articulação e integração de programas intersetoriais, que muitas vezes são concebidos com essa intenção, mas não conseguem desenvolver-se de maneira coordenada e articulada na prática. É o caso da SECADI, que foi criada com a incumbência de integrar setores distintos da população e pensar questões, como gênero, sexualidade, população indígena, educação para o campo, alfabetização de jovens e adultos, afrodescendentes, entre outros. E, nesse âmbito, não se conseguiu estabelecer uma dinâmica entre projetos pontuais e programas de EPJA mais amplos, com vistas a atender as especificidades dos diferentes grupos atendidos.

A SECADI, do ponto de vista das políticas que implementou, foi um espaço muito rico, no entanto, não foi conduzida de modo que a estrutura do Estado pudesse convergir diferentes políticas e programas, respeitando suas especificidades, criando um sentido comum e uma agenda intersetorial.

No Brasil, existem políticas e projetos específicos de EPJA pertinentes para pessoas em situação de pobreza?

No Brasil, não é possível falar disso sem deixar de retratar o papel que tiveram o Bolsa Família e outros Programas como o PROJOVEM e o PROEJA, assim como, posteriormente, o PRONATEC.

Que mecanismos de monitoramento e seguimento foram estabelecidos para os programas e os projetos de EPJA no Brasil?

Não temos, infelizmente. Na Resolução CNE n. 3/2010, há a indicação de que se criaria um sistema de monitoramento para a modalidade, mas isso nunca foi levado adiante. As avaliações de larga escala impulsionadas pelo governo federal são direcionadas somente para o ensino regular. 

No Brasil, os recursos do Estado e as previsões orçamentárias para a EPJA são suficientes?

Os recursos destinados à EPJA são basicamente os provenientes do FUNDEB [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], de âmbito nacional. Além disso, em algumas escolas de EPJA, não há merenda ou condições mínimas para a oferta da modalidade. A modalidade parece uma inquilina do ensino regular, ocupa o espaço que sobrou.

Como você avalia a formação docente para a educação de pessoas jovens e adultas no Brasil?

Poucas instituições no Brasil têm um currículo específico para EPJA. A UERJ [Universidade Estadual do Rio de Janeiro] tem uma experiência pioneira e é uma das poucas instituições em que a/o estudante de Pedagogia tem acesso a um currículo e a estágios específicos para a modalidade.

Em geral, o Curso de Pedagogia se limita à educação da criança e do adolescente. Como trabalhar na educação com a pessoa adulta? Como constituir o processo de ensino-aprendizagem com a/o jovem e a/o adulta/o? Salvo algum curso de aperfeiçoamento ou especialização, há poucas opções para a formação do educador que atua na EPJA.

Que recomendação você faria às autoridades brasileiras e internacionais, para que se garanta o direito à EPJA na América Latina e no Caribe?

É preciso olhar com cuidado e atenção a modalidade da EPJA. Nos países desenvolvidos, falar em educação de adultas/os é falar de educação permanente ou ao longo da vida, é garantir à pessoa adulta e à idosa um espaço de socialização, requalificação e formação. Porém, na América Latina e no Caribe, temos o desafio de olhar a educação de jovens e adultas/os como um espaço de inclusão social e educacional, assim como de garantia à dignidade humana. A questão da alfabetização é fundamental, especialmente quando se verificam os altos índices de analfabetas/os funcionais no Brasil, muitos das/os quais são jovens que passam pela escola, mas não conseguem converter o que aprenderam em oportunidades de trabalho e projetos de vida.

A educação de jovens e adultas/os não pode continuar sendo marginalizada. Precisa ser protagonista desse processo e ser integrada aos projetos e programas nacionais existentes. A escolarização deve gerar o empoderamento dos sujeitos, garantindo que a/o estudante seja um sujeito de direitos, dignidade e entendimento do seu papel na sociedade, e não somente reproduza a estrutura e a organização social vigentes. Há uma responsabilidade governamental nesse sentido, pois se alguém saiu da escola e quer retornar, é porque houve uma omissão do Estado, em algum momento, com relação ao seu direito à educação.

 

Deja tu comentario